escrito entre 28 de maio e 1º de junho de 2025
no mês passado, visitei dois sebos no centro de porto alegre. comprei dois livros em cada um por menos de cem reais. um desses livros encontrei na prateleira mais alta de uma das centenas de prateleiras do segundo sebo, muito maior que o primeiro, com suas paredes de madeira envernizada forradas de livros, e livros, e mais livros. não acredito, assim como qualquer coisa nessa vida, que seja por acaso que meus olhos tenham encontrado, em meio à infinidade de brochuras, julie & julia, escrito por julie powell. o livro que foi adaptado para o cinema e transformado em um de meus filmes favoritos.
julie & julia, lançado em 2009, é definitivamente meu comfort movie favorito. é baseado na história real de julie powell, uma funcionária pública que atende ligações relacionadas ao 11 de setembro, cerca de um ano após o ocorrido. tendo se mudado para nova york recentemente com o esposo, eric, julie se vê exausta em conciliar o emprego desgastante com o apartamento minúsculo no afastado bairro do queens. após encontrar o livro de culinária mastering the art of french cooking, publicado pela renomada chef julia child em 1961, julie decide cozinhar as 354 receitas do livro — que variam de ovos poché a molho de tutano de boi —, e encontra um novo propósito em sua vida.
ela decide criar um blog, que entitula de “projeto julie/julia”, pra compartilhar sua nova empreitada, e fatos corriqueiros de sua vida, a cada nova receita. o blog ganhou popularidade e deu origem ao livro, publicado em 2005, que veio parar em minhas mãos 20 anos depois, o qual devorei em poucos dias como faria com um dos pratos deliciosos do livro de julia.
assisti ao filme pela primeira vez quando tinha cerca de onze anos. era um verão preguiçoso, estava esparramado na cama e navegando pelos canais da tv. me deparei com esse filme, então, que nunca havia assistido. me apaixonei pela história, mas tive uma grande descoberta. fui hipnotizado pela por meryl streep, que, após essa tarde tarde de verão preguiçosa, viria a se tornar uma grande ídola, a camaleoa que origina outras formas de vida com seu rosto e corpo. foi assistindo a poucos minutos desse filme que tive um impulso de fazer a mesma magia que ela: atuar.
ao longo dos anos, retornei a esse filme, delicioso em todos os sentidos da palavra. a história emocionante, as comidas salivantes, as atuações maravilhosas, as paisagens de paris e nova york, a trilha sonora ensolarada de alexandre desplat, a direção da sublime, icônica, singular nora ephron — a receita perfeita pro conforto.
a verdade é que comecei a escrever esse texto quando ainda me encontrava na página 128. não me aguentei — lendo julie, foi como se nós dois estivéssemos sentados no balcão de sua cozinha, bebericando seus gimlets (drink que ela e eric tanto bebiam enquanto preparava as receitas). os paralelos e costuras que julie faz entre a vida e a cozinha fez com que eu mergulhasse novamente no livro e não finalizasse esse texto enquanto não chegasse a seu fim, porque sabia que outras pérolas entrariam aqui.
antes de avançar nos capítulos, no entanto, quis deixar o que já havia escrito aqui salvo. estava procurando uma última imagem pra anexar quando me deparei com a notícia que mudou o curso das coisas: julie powell morreu em 2022, após ter um ataque cardíaco. fiquei incrédulo pelo resto da noite. da última vez que havia visto o filme, joguei seu nome no google e encontrei seu twitter ativo, cheio de seus comentários sagazes e sarcásticos. isso deve fazer uns quatro anos. nesse intervalo, a notícia não chegou até mim.
achei que ia terminar o livro me debulhando em lágrimas, catártico por ter chegado ao fim de uma leitura tão significativa. mas, lendo o último capítulo, só me debulhei em risadas, porque julie é muito engraçada. a linguagem desse livro, tão coloquial, despojada e franca, lembrou minha experiência lendo a autobiografia de rita lee, cuja leitura comecei no dia em que ela morreu. existe algo mais paradoxal e confuso do que se perceber rindo, gargalhando, lendo a prosa de alguém que acabou de morrer? (naquela noite, julie tinha acabado de morrer pra mim.) como se o luto e a alegria não pudessem, de forma alguma, caminhar juntos. alegria não pelo fato da morte, mas pelo fato da vida dessa pessoa nesse tempo-espaço. vou reformular minha pergunta: existe forma mais bela de ser lembrado senão na alegria dos que ficam? que dirá em desconhecidos, em diferentes idiomas, em diferentes linguagens.
no 365º dia do projeto, enquanto a 524ª e última receita — pâté de canard en crouté, pato desossado, recheado e assado em uma crosta de massa — dourava no forno, julie recebeu uma ligação de um repórter alegando que havia recém feito uma entrevista com julia child, que, aos 91 anos, residia em uma casa de repouso na califórnia. ele disse a julie que perguntou a opinião de julia sobre o blog, e parafraseou sua resposta. julie desligou o telefone e declarou, “julia me odeia”, seguido de um choro compulsivo e consolos do esposo e das amigas. a grande inspiração por trás do projeto que, segundo ela, salvou sua vida, o refutou.
cerca de um ano depois, no processo de escrita do livro, julia morreu. julie termina o livro homenageando-a:
em vez de vagar por um céu artificial e mal-acabado, perguntando-se como obter o verdadeiro linguado de dover, ela está tagarelando pelos aposentos da minha mente, preparando refeições em um belo e robusto forno garland, bebendo seu vinho e divertindo-se muito. ela tem suas manias, e pode ser teimosa, mas não clarifica a manteiga porque decidiu que isso é uma besteira, o que mostra que ela continua aprendendo. e já que lhe dei um lugar para dormir, ela decidiu que não sou uma puta tão soberba, afinal de contas, e que no fundo sou uma garota bem bacana.
pelo menos isto é o que a julia da minha imaginação pensa. há milhares de julias por aí, em mentes por todo o mundo, mas esta julia é minha.
quando comecei esse substack, a primeira imagem que me veio à mente foi julie no filme, interpretada por amy adams, digitando as palavras do primeiro post de seu blog. não tive a oportunidade de contar a julie essa história. mas agora a imagino junto a julia, nesse céu que ela criou pras duas, cozinhando juntas e bebendo vinho e gimlets.
julie criou seu blog em um mundo diferente, dependendo de internet discada, quando tudo aqui ainda era mato, e representou um marco na história do blogging. a expoente comunidade que se construiu em torno de seus relatos e a crescente popularidade do projeto lhe apresentou ao mundo. hoje, com as redes sociais, isso é cada vez mais comum — as oportunidades que, insanamente, chovem a quem viraliza, por qualquer motivo. em tempos de tanta exposição e valorização do nada, o projeto de julie teria o mesmo alcance se, ao invés de ser narrado através de sua escrita, se desse em vídeos curtos do tiktok? será que a simples escrita seria suficiente, sem barulhinhos de asmr e edições profissionais, pra ter atenção?
não sei o que concluir quando se trata de tecnologia, mas há duas coisas que independem da passagem do tempo. se a culinária e o humor se encontram na mesma linguagem de amor, julie ficou eternizada nas duas. afirmo por experiência própria que cozinhar pra alguém e fazer alguém rir são atos de serviço que entregam uma satisfação semelhante, ao provocar uma risada sincera ou ouvir um “humm…” quando a comida está boa.
julia child escreveu um livro em que constam as receitas que, aos 37 anos, mudaram sua vida.
quarenta anos depois, julie powell encontrou o livro de julia na cozinha de sua mãe e ele mudou sua vida.
dez anos depois, no outro lado do equador, um menino assiste sua história na televisão e uma fagulha do que viria a ser seu futuro se acende.
vinte anos depois, ele encontra o livro de julie na última prateleira de um sebo.
e, assim como a comida e a risada, as pequenas grandes paixões que encontramos, às quais nos agarramos como botes salva-vidas, mudam nossa realidade e edificam algumas das memórias mais marcantes. seus frutos passam de mão em mão, de boca em boca, e, de alguma maneira, transformam o mundo de quem as experimenta. a julie da minha imaginação dá uma risada do duplo sentido nessa frase. e eu termino esse texto, devidamente, rindo (e com fome).